Último livro de Umberto Eco traz crônicas sobre Harry Potter, Twitter e feminismo

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O autor de O Nome da Rosa, morto ano passado, identificou temas da “sociedade líquida” de Bauman em crônicas curtas e assumidamente desconexas

O último livro de inéditas de Umberto Eco, morto em fevereiro de 2016m, sai no Brasil pela editora Record. São textos sobre política, filosofia, literatura, feminismo, racismo, internet, entre outros, que foram publicados originalmente no jornal italiano L’Espresso. Tem até crônica sobre Harry potter, onde ele faz uma defesa de J.K. Rowling contra as pessoas que a acusam de fazer inserções “diabólicas” no personagem. Eco identifica em suas crônicas temas da “sociedade líquida” definida por Zygmunt Bauman. Daí o nome do livro Pape Satàn Aleppe – Crônicas de Uma Sociedade Líquida.

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Quando criou sua coluna no L’Espresso, em 1985, Umberto Eco se inspirou nas caixinhas de fósforos Minerva, que, segundo ele, ofereciam dois espaços em branco, nos quais era possível tomar notas. “Era assim que eu via aquelas intervenções: breves anotações e divagações sobre os mais variados temas que me passavam pela cabeça – em geral inspirados na atualidade, mas não somente, pois podia incluir em atualidades o fato de ter sido tomado, numa bela noite, pelo súbito desejo de reler, sei lá, uma página de Heródoto, uma fábula de Grimm ou uma revistinha do Popeye”, escreve Eco, na introdução do livro, que inclui as crônicas de sua coluna “La Bustina di Minerva” publicadas no jornal italiano de 2000 a 2015.

Segundo Eco, os textos reunidos neste livro são reflexões sobre os fenômenos do que o filósofo Zigmunt Bauman definiu como “sociedade líquida”, afetada pela crise do Estado como instituição que garantia aos indivíduos proteção e possibilidade de resolver, de modo coletivo e homogêneo, os problemas do nosso tempo. Para Bauman, sobre quem Eco abre a série de artigos do livro, a sociedade líquida é afetada por crises ideológicas e dos partidos e é profundamente fincada em valores individuais e voláteis. É sobre isso e muitos outros assuntos que Eco escreve e articula nesses pequenos ensaios, ou “bustinas”, como carinhosamente a eles se refere.

Numa crônica sobre o twitter, de 2013, antecipa o que tanto discutimos hoje sobre os boatos de internet, cunhados como pós-verdade, que foi eleita a palavra-conceito do ano em 2016, pelo Dicionário Oxford. “A irrelevância das opiniões expressas no Twitter é que todos falam, e entre estes todos há quem acredite nas aparições de Nossa Senhora de Medjugorje, quem frequente cartomantes, quem ache que o 11 de Setembro foi arquitetado pelos judeus, quem acredite em Dan Brown. Sempre me fascinaram as mensagens do Twitter que aparecem embaixo durante as entrevistas do talk-show de Telese e Porro. Falam de tudo e mais alguma coisa, um contradiz o outro e todos juntos não dão uma ideia do que pensam as pessoas, mas apenas do que pensam certos pensadores desarvorados.”

Numa “Bustina” de 2001, ele defende o fenômeno Harry Potter e sua autora, J.K.Rowling, contra os que diziam que as histórias do bruxinho continham ideias diabólicas. “Se o clima é este, creio que devo entrar em campo a favor de Harry Potter. As histórias são, é claro, histórias de magos e feiticeiros e é óbvio que teriam sucesso, pois as crianças sempre gostaram de fadas, anões, dragões e bruxos e ninguém nunca pensou que Branca de Neve fosse criação de um complô de Satanás, e se tiveram e ainda têm sucesso é porque sua autora (não sei se por cultíssimo cálculo ou prodigioso instinto) soube colocar em cena situações narrativas verdadeiramente arquetípicas.” Para Eco, as histórias passadas em Hogwarts e o sofrimento de Potter trazem elementos de contos como O Patinho Feio e Cinderela, clássicos como “Oliver Twist” e “Os meninos da rua Paulo” e até personagens como Mary Poppins e Peter Pan.

Em 2013, já antenado com a força do movimento feminista, escreve uma coluna sobre como as mulheres filósofas foram apagadas da história e preconceitos como os que às mulheres cabiam a poesia e não a matemática foram difundidos ao longo do tempo. Citando um livro francês, ele enumera, no texto, o nome de várias filósofas, lembrando que uma delas, Hipátia de Alexandria, foi escolhida como heroína pelo movimento feminista, mas pouco restou de sua obra. “Folheei pelo menos três enciclopédias filosóficas hodiernas e não encontrei nenhum traço destes nomes (exceto Hipátia). Não é que não existissem mulheres que filosofassem. É que os filósofos preferiram esquecê-las, talvez depois de terem se apropriado de suas ideias.”

Bem ao estilo de toda reunião de crônicas, estas trazem assuntos tão diversos que o autor, reconhecendo a miscelânea, própria de nossos tempos líquidos, decidiu nomeá-las de Pape Satàn Aleppe, uma citação da Divina Comédia, de Dante. Ele explica: “A citação é evidentemente dantesca (“Pape Satàn, pape Satàn aleppe, Inferno, VII, 1), mas como se sabe, embora uma profusão de comentaristas tenha tentado encontrar um sentido para o verso, a maior parte deles concluiu que não tem nenhum significado preciso. Em todo caso, pronunciadas por Pluto, estas palavras confundem as ideias e podem se prestar a qualquer diabrura. Achei, portanto, oportuno usá-las como título desta coletânea que, menos por culpa minha do que por culpa dos tempos, é desconexa, vai do galo ao asno — como diriam os franceses — e reflete a natureza líquida destes quinze anos.”

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O livro chega às livrarias agora no final de junho, pela Record. O volume traz 420 páginas e custará R$ 59,90.

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Trecho: Leia um pedaço da crônica “Dar Tchauzinho”, de 2002.

“Então, numa época de grandes e contínuos deslocamentos, onde todos sentem a falta da cidade natal e das próprias raízes, onde o outro é alguém com quem nos comunicamos a distância via internet, parece natural que os seres humanos busquem reconhecimento por outras vias e a praça da aldeia seja substituída pela plateia quase planetária das transmissões de TV ou de qualquer coisa que vier substituí-la.

Mas talvez nem mesmo os professores ou quem vier a assumir seu lugar serão capazes de recordar que naquele tempo antigo vigorava uma distinção muito rígida entre ser famoso e ser falado. Todos queriam ser famosos como o melhor arqueiro ou a melhor bailarina, mas ninguém queria cair na boca do povo como o maior corno da cidade, o impotente desmascarado, a puta desrespeitosa. Como medida preventiva, a puta procurava espalhar que era bailarina e o impotente contava falsas aventuras sexuais pantagruélicas. No mundo do futuro (se for parecido com o que hoje se configura) tal distinção desaparecerá: para serem “vistas” ou “faladas” as pessoas estarão dispostas a fazer qualquer coisa. Não haverá diferença entre a fama do grande imunologista e a do moleque que matou a mãe a machadadas, entre o grande amante e o vencedor da disputa planetária pelo menor membro viril, entre quem funda um leprosário na África central e quem frauda melhor os impostos. Tudo pode servir, desde que se consiga aparecer e ser reconhecido no dia seguinte pelo vendedor do supermercado (ou pelo banqueiro).

Se para alguns posso parecer apocalíptico, pergunto o que significa hoje (ou melhor, há décadas) colocar-se atrás de um sujeito com microfone para aparecer dando tchauzinho ou participar de um programa de perguntas e respostas, mesmo sem saber sequer que uma andorinha só não faz verão. Que importa, ficarão famosos! Mas não sou apocalíptico. Talvez o menino de quem falo se torne adepto de uma nova seita que preconize esconder-se do mundo, exilar-se no deserto, sepultar-se num claustro e cujo objetivo seja o orgulho do silêncio. No fundo, isso já aconteceu no ocaso de uma era, quando os imperadores começaram a transformar seus próprios cavalos em senadores.”